"Sim! É possível que personagens se tornem perfeitos devido à simples vontade de conhecê-los pelo nome. Ao utilizar o artifício de esconder a identidade dos pilares da trama, autores tentam criar uma armadilha capaz de sugar o leitor para dentro do seu texto. Poucos têm êxito, como na experiência de sucesso encontrada na sucessão de linhas a seguir..." Fabio Jr, Jornalista.
A passividade era maior do
que qualquer plano, meta e tentativa de produção. Tinha uma caneca com metade de
café frio, e a outra metade com ar gelado. Na face, a frase: “Melhor tio do
mundo”. Ele sabia que era um tio meia-boca, mas tinha sobrinhos maravilhosos.
Enquanto tentava escrever,
ou simplesmente esquematizar o que pretendia escrever, coçou os olhos pelo
menos umas quinhentas vezes. Coçava como quem coloca na conta daquele ritual o
clareamento das ideias. Mas era inútil.
Faltavam apenas algumas
horas para a escuridão da madrugada transformar a sexta-feira. No outono os
dias são misteriosos. Quando a luz não dá as caras, fica impossível saber se
realmente o dia será dourado ou cinza. Dependendo da região, nem o aplicativo
no celular ajuda. À medida que a hora passava, seus dedos magros tremiam mais e
mais.
Ele queria muito ter as
ideias concatenadas para começar freneticamente sua labuta. Não conseguiu. A
rotina desde as primeiras horas do último dia da semana era a mesma: escrevia
algo que achava que valesse a pena, lia, relia e depois de selecionar todo o
parágrafo, apertava a tecla “Del” como quem ofendesse o oficio.
Mas o que mais lhe deixava
puto, era o fato de que facilmente em outras oportunidades ele se via bem mais
competente. Escrevia como um louco. As ideias fluíam e a coisa acontecia com
uma naturalidade tão ímpar, que seus textos eram extensões de sua anatomia.
Acho que personalidade soaria melhor na frase anterior. Foda-se, o texto é meu.
Mas o dele era só dele. E
sabia que estava guardado em algum lugar. A esperança do achado diminuía com o
findar da escuridão da madrugada.
Mais um pouco de café.
- Puta que pariu. Tá gelado
essa porra!
Pensou antes de ir à cozinha
ligar a cafeteira e colocar o dobro de pó do que de costume.
Olhava atônito os primeiros
raios da manhã esbofetearem sua cara. O tempo era marcado pelo compasso irritante do
eletro produtor de café. Uma cadência que lembrava muito um metrômetro. Acendeu
mais um cigarro. A coleção de guimbas era grande e nojenta.
Seu corpo de tão grande e
magro parecia um pouco envergado à frente. Nariz grande e que brotavam poucos
pelos das narinas. Nunca gostou de bigode e andava sempre com barba por fazer. Pelos
brancos exageravam sua aparência. Tinha pelo menos três ou quatro anos a menos
que a maioria achava.
Olhou para o grande relógio
branco de parede. Sim, era branco, mas tinha números pretos e uma borda
prateava que emoldurava aquele círculo do tempo angustiante que ele vivia.
Coçou o queixo e tomou um
gole do novo café que acabara de tirar da cafeteira. Fez uma careta, não era lá
grandes coisas o sabor. Comeu um biscoito que parecia estar molhado, de tão
mole devido ao tempo que ficou dentro do pote de vidro.
Voltou para a mesa, ligou o PC,
e ainda estava lá o desafio. Mas enganava-se quem achava que a obra estava em
branco. Ele queria apenas tentar achar uma frase que sintetizasse a obra.
Seu romance estava muito
próximo de ser concluído. Precisava da chave que fechasse da forma que ele
sonhou. Esperava, e nada surgia durante toda a madrugada de sexta
Escreveu a obra em três
meses e não conseguia a frase. O desfecho. Foi aí que veio a luz. Correu até a
janela de seu apartamento. Abriu a persiana com cuidado para não ferir os olhos
devido ao costumeiro escuro da madruga.
Como um relógio, ela passou
para trabalhar. Ficou esperando o tempo passar e ela esperava o ônibus. Bem em
frente ao seu apê. Quatro andares separavam ela e ele.
Voltou ao PC. Misturou um
pouco de Jack Daniel’s no café. Tomou um belo gole e abriu o arquivo de seu
livro pela primeira vez desde a tarde de quinta. Escreveu alguns caracteres
para terminar seu romance sobre um crime passional.
“A
sala de interrogatório tinha apenas o acusado que tentava explicar o que o
levou a fazer aquilo. O investigador ligou o gravador e o pobre levantou a cabeça,
olhando com certa melancolia para o seu interrogador.
Diga
senhor, por que a matou?”
Foi aí que escreveu a última
frase. Aquela que procurou por toda a madrugada. Após ouvir Animals do Floyd e pelo menos uns três LPs de festivais da canção. Ele achou a
sua frase quando observou o cotidiano dela que continuava no ponto de ônibus.
A companhia tocou e ele foi
abrir. Era ela.
- Pensei que não iria subir.
- Sabe que sempre vou subir...
Sempre.
-Fiz café. Tá uma bosta.
- Nunca foi bom, mas adoro o
seu café.
Os dois foram para a
cozinha, se beijaram e ele a carregou nos braços para o quarto. Fecharam a
porta.
Na sala, sozinho, desprezado
e finalizado, um texto de aproximadamente 300 páginas estava aberto no PC. Mas
o cursor do Word piscava justamente no fim do parágrafo a seguir:
“Olha
doutor... foi quando ela saiu de dentro do quarto com aquele vestido vermelho
que contrastava com o loiro dourado de seus cabelos. Aquele maldito vestido que
a deixava maldosa e estupidamente... linda."